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A noite acesa de Bahaudin Majruh (I). O suicídio e o canto, por José António Lozano

O suicidio e o canto - B. Majruh

O poeta e filósofo afegane Bahaudin Majruh é o autor de uma extraordinária obra literária em língua pastu, além de um símbolo da resistência afegã que se enfrentou tanto aos ocupantes soviéticos como aos fanáticos islamistas. Exilado desde 1980 en Peshawar é o criador de uma série de livros que permaneceram inéditos durante muito tempo, alguns deles publicados postumamente. Nascido em 1928, faleceu assassinado em 1988, o dia anterior a cumprir os sessenta anos, por sicários da facção fundamentalista de Gulbuddim Hekmatyar (que está na origem do movimento talibã, e que foi apoiado pola C.I.A e os serviços secretos paquistaneses). Foi decano da Faculdade de Letras de Kabul e fixo o seu doutoramento em filosofia na Universidade de Montpellier. Mantivo um incansável apoio aos Muyahidim que luitaram contra os soviéticos através da Agência Afegã de Informação, que dirigia. Reflecte-se na sua obra a experiência dos mestres sufis clássicos: Rumi, Hafiz, Hakim Sanai, Attar, assim como as influências de Montaigne, Sartre, Heidegger, Nietzsche com os que dialoga. Ainda que a força dos mestres tradicionais se imponha, nas maneiras e no estilo, ao verniz universitário. Junto com a sua irmã e cunhada recopilou os cantos das mulheres afegãs, os landais, poemas breves onde se recolhe toda a paixão e a força oculta nas mulheres pastuns, elementos sacrificiais de uma cultura ancestral que denigra a condição feminina até limites inimagináveis. Neles transparece a consciência e a ousadia, a nobreza e aristocracia do espírito que se revela contra a imposição atávica da cultura. O suicidio e o canto é o título deste livro, onde o tabu do amor é uma e mil vezes posto em questão. Amor e morte são as duas caras de um mesmo assunto. Proclamar o primeiro é, inequivocamente, ganhar-se o segundo por direito próprio:

Ardo em segredo, em segredo choro,

sou a mulher pastum que não pode desvelar

o seu amor.

Esconderas-te atrás da porta,

e eu acariciava os meu seios nus

e tu olhaste-me.

 

Vem, amado, rápido, vem a mim

o espantalho dorme e podes

beijar-me.

Deus, é verdadeiramente pecado?

tu fixeste o jardim deste mundo

e eu apanhei a flor que em verdade

mais gostava.

O espantalho fai referência a um velho ou a um neno do matrimónio obrigatório. As leis de relações entre clans marcam este tipo de casais amanhados. Os landais são como relâmpagos límpidos, como facas, as vezes flechas, em que a sexualidade, a morte e o humor se combinam em tranças delicadas e sagazes. Majruh soube mostrar através desta recolecção a face oculta que as fotografias dos burka não vão mostrar nunca. Um certo paradoxo aflui ao lermos os textos. Enquanto a cultura ocidental se sinte livre e democrata, em muitos aspectos infelizmente autocomprazente, desconhece a pureza e a força que se destila do verdadeiro sentido da liberdade. Era Nietzsche o que dizia que o amor como paixão denotava uma origem aristocrática. Referia-se ele ao contexto trovadoresco que estava nos alicerces da cultura francesa. Era dele também a frase em boca de Zaratustra: “A sabedoria é uma mulher, ama unicamente a um guerreiro”. A mulher pastú pode ser submetida de multiples maneiras mas nunca ao fundo da sua consciência, na sua dimensão moral. O trágico da situação liga-se à própria tragédia afegã no s. XX: a irrupção brutal do mundo moderno que descompensou o sempre dificil equilibrío das relações tribais de um país cujos parámetros não tinham nada a ver com a dos estados planificados. O veneno do estado, o frio monstro de aço fixo estragos num pais orgulhoso e antigo. E como dizia um velho indio sioux: a destruição da cultura sioux só foi possível quando chagaram ao seu coração, quer dizer, a mulher sioux. Majruh percebe como a onda de fanatismo e destruição que invade o seu amado país quere chegar também ao coração da sua mulher. Só ha, então, o suícidio ou o canto. Diz Majruh:

Perante este estado de cousas, esta ancestral picota, como pode reagir?. Aparentemente, é a submissão total. Realiza o trabalho como um relógio. Aceita e padece o sistema de valores que a convirte num objecto. Mas se observarmos mais de perto, vê-se que, no seu interior, alimenta a rebeldia. De este protesto fechado, endurecido dia tras dia, não da, finalmente, mais que duas testemunhas: o seu suicídio e o seu canto.

Sabemos que o código de honra tribal considera o suicídio uma cobardia e que o islão o proíbe. Nenhum varão pastum recorre a ele. Aliás, eliminándo-se deste jeito desonroso, a mulher proclama tragicamente o seu ódio à lei comunitária. Mesmo os meios utilizados para matar-se sublinham o sentido icinoclasta do sacrifício: só se suicidam envenenándo-se ou afogando-se… Com o fusil o homem caça e guerreia, com a corda ata o gado, enlia os feixes e puxa as cargas pesadas.

A mulher pastum impõe, com o seu suicídio, um acto socialmente irrecuperável, mas com o seu canto desenvolve um desafio de idéntica natureza que pode também, á sua maneira, resultar fatal, pois as suas melodias exaltam incansavelmente três temas que sabem a sangue: o amor, a honra, a morte”.

Comenta Majruh como a mulher pastum apanha o código de honra tribal e o leva até as últimas consequências: empurra aos homens a que assumam as consequências extremas dos seu próprios princípios, resultando uma inversão. Os homens acabam comportando-se segundo “a olhada que a mulher deita sobre eles, preso do seu próprio código de honra” :

Oxalá morras no campo da honra

meu amado!

Para que as raparigas cantem a tua glória

Quando vaiam à fonte.

Ai, meu amor. Se tremes tanto

nos meu braços

que farás quando brotem mil relâmpagos

do choque das espadas?

Meu amor, vai primeiro vingar o sangue

dos mártires

antes de merecer o refúgio dos meus seios.

Hoje, na batalha, o meu amante voltou-lhe

as costas ao inimigo.

Sinto-me humilhada por tê-lo beijado

Ontem.

Volta perforado polas balas

dum tenebroso fusil

eu coserei as tuas feridas

e darei-te a minha boca

Até aqui, por hoje, esta incompleta notícia de Majruh, ou das mulheres afegãs. Fica para próximas entregas (e eu espero que o levantador de minas permita que levantemos umas poucas do Afgenistão, um dos países mais minados do mundo) falar dos livros propriamente de Majruh. A epoeia do Ego-Monstro: O viageiro da meia-noite, e O Riso dos amantes, cimeiras da literatura afegã do século XX. Também de Rir com Deus, recopilação de histórias dos mestres sufis, onde o riso e o humor são a expressão íntima da relação com Deus.

José António Lozano

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6 thoughts on “A noite acesa de Bahaudin Majruh (I). O suicídio e o canto, por José António Lozano

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      Dou as graças ao autor por dar mais chaves da obra viva de Bahaudin Majruh, sobre a situação das mulheres e homens dos campos afegãos e, diga-se de passagem, sobre a cultura persa, uma das matrizes ignoradas da nossa civilização.

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      Dou as graças ao autor por dar mais chaves da obra viva de Bahaudin Majruh, sobre a situação das mulheres e homens dos campos afegãos e, diga-se de passagem, sobre a cultura persa, uma das matrizes ignoradas da nossa civilização.

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      Muito interessante este trabalho (iniciado aqui, à espera de novas entregas), pelo que supõe de desmitificação da visão sesgada que temos do Islão no chamado “Ocidente”.
      Aqui podemos ter conhecimento de que a Verdade sempre é difícil de manter com a mesma intensidade que lhe é própria em todo o mundo, e admirar-nos também de que esse trabalho sempre estará atravessado por uma beleza única, com certeza imortal nos corações abertos à sua mensagem.

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      Muito interessante este trabalho (iniciado aqui, à espera de novas entregas), pelo que supõe de desmitificação da visão sesgada que temos do Islão no chamado “Ocidente”.
      Aqui podemos ter conhecimento de que a Verdade sempre é difícil de manter com a mesma intensidade que lhe é própria em todo o mundo, e admirar-nos também de que esse trabalho sempre estará atravessado por uma beleza única, com certeza imortal nos corações abertos à sua mensagem.

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      Graciñas por abrir a porta a ese mundo descoñecido da literatura árabe.

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      Graciñas por abrir a porta a ese mundo descoñecido da literatura árabe.

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