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A César o que é de César (uma breve aclaração jurídico-pública), por Pedro Casteleiro

A João e Mário

Atribui-se ao rei Salomão aquele exemplar juízo pelo qual, ante difícil dilema, é outorgada a custódia de um menino à mãe que estava disposta a perdê-lo antes de o ver morto -em troca de àquela que o queria mesmo aos bocados. Estas dicotomias apresentam-se com excessiva frequência quando tratamos juridicamente com o sentimento do amor à pátria, pulso legítmo e pábulo de guerras conceptuais (e infelizmente de outros tipos). E, como diz o jurista galego e mestre Bernardo Sánchez Pavón, sem uma prévia delimitação, mais ou menos exacta, daquilo que de substantivo se pretende que haja [nos conceitos, arremessados de bando a bando]. Tentarei delimitar pois alguns conceitos, sob a intensa luz de um dos nossos lúcidos avós, paradoxal e eficazmente contemporâneo.

Há uns meses encerrou-se na Andaluzia o congresso dedicado a quem consideramos hoje como um dos pais da Economia moderna, o tunesino de origem andaluza Ibn Khaldun -coicidindo com o sexto centenário da sua morte. Vulto sobressaliente também no terreno jurídico, Ibn Khaldun (1332-1406) foi testemunha directa dos acontecimentos políticos nos últimos reinos de Taifas. Para ele o alicerce do Estado acha-se –conforme assinala o politólogo Jean Touchardante tudo no espírito de corpo de um clã, de uma tribo, de um povo. Sem o espírito de corpo que anima um povo não é possível estabelecer-se o Estado. Os valores ideológicos ou religiosos que impregnarem o Califado, o Estado, vêm depois e funcionam como elemento coesionador ad extra do corpo social. Portanto, para Ibn Khaldun, o Estado é instituído, com o apoio do povo, para servir ao bem geral. Nunca ao contrário.

À luz da sua obra, parece claro que se considerarmos que o bem jurídico superior for a permanência de uma qualquer estrutura estatal, como imperativo categórico, mesmo contra a vontade dos governados, estaríamos a preterir o fim supremo do Estado, que é precisamente o de servir às necessidades e à vontade do corpo social, regularmente manifestas e expressas. O bem jurídico-público prioritário, para Ibn Khaldun, era pois o de servir a uma realidade prévia e soberana que é a do povo, e à garantia desse bem estão orientadas as estruturas do Estado, colocado sob a vigilância da sociedade.

Mas, se me permitirem, quereria deprender outras aplicações práticas da lição de Ibn Khaldun. Julgo que para ele a nação é –mais do que qualquer outra cousa- em última instância extensão do núcleo familiar. E da vontade popular depende a estrutura e a legitimidade do Estado, que não pode ser imposta nem reforçada por uma vontade oposta àquela do corpo social.

Conforme à nossa tradição constitucionalista ocidental, mesmo desde a Declaração dos Direitos do Bom Povo da Virgínia, a finalidade suprema do Estado não é a da autopreservação do Estado. A finalidade principal dos Poderes Públicos visa à conservação de uma dada estabilidade social que permite ao indivíduo e aos grupos desenvolverem-se livre e plenamente ou, na linguagem de clara inspiração maçónica dos velhos legisladores norte-americanos: a utilidade fundamental do Estado radica em garantir o direito à procura da felicidade. Não em conseguir tal fim para os indivíduos, mas em dispor as condições que possibilitem esse trabalho individual. Amam à pátria, como diria Salomão, e parafraseando a Samuel Johnson, não os canalhas que usam o patriotismo como último refúgio mas aqueles que fazem do patriotismo uma virtude civil: a de procurar a sua própria felicidade em harmonia com a do vizinho, sem prejuízo da sua língua, ideologia, raça ou religião.

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14 thoughts on “A César o que é de César (uma breve aclaração jurídico-pública), por Pedro Casteleiro

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      Os séculos fazem pontes desabar, o ditado era -mais correctamente- ubi ius ibi natio, com o mesmo significado. Aproveito o ensejo para deixar outro ditado, ancião também, mas menos, e curiosíssimo para nós hoje: tivo Galiza rei, antes que Castela leis. Significava que na Galiza existia a cúspide de uma organização social complexa, de um estado, se quiserem, antes mesmo do que na Castela houvesse o mínimo que um povo pode dar-se: o Direito.

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      Os séculos fazem pontes desabar, o ditado era -mais correctamente- ubi ius ibi natio, com o mesmo significado. Aproveito o ensejo para deixar outro ditado, ancião também, mas menos, e curiosíssimo para nós hoje: tivo Galiza rei, antes que Castela leis. Significava que na Galiza existia a cúspide de uma organização social complexa, de um estado, se quiserem, antes mesmo do que na Castela houvesse o mínimo que um povo pode dar-se: o Direito.

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      Os séculos fazem pontes desabar, o ditado era -mais correctamente- ubi ius ibi natio, com o mesmo significado. Aproveito o ensejo para deixar outro ditado, ancião também, mas menos, e curiosíssimo para nós hoje: tivo Galiza rei, antes que Castela leis. Significava que na Galiza existia a cúspide de uma organização social complexa, de um estado, se quiserem, antes mesmo do que na Castela houvesse o mínimo que um povo pode dar-se: o Direito.

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      Os séculos fazem pontes desabar, o ditado era -mais correctamente- ubi ius ibi natio, com o mesmo significado. Aproveito o ensejo para deixar outro ditado, ancião também, mas menos, e curiosíssimo para nós hoje: tivo Galiza rei, antes que Castela leis. Significava que na Galiza existia a cúspide de uma organização social complexa, de um estado, se quiserem, antes mesmo do que na Castela houvesse o mínimo que um povo pode dar-se: o Direito.

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      Oportunas as vossas considerações, amigos. A do Alfredo, por radicalmente verdadeira, e também porque me permite reiterar que o Direito é uma emanação do povo, ubi ius ibi populus: onde há Direito aí há um povo, diziam há dous mil anos em Roma.
      As do Ramiro, muito oportunas. Na verdade eu considero que a nossa última estação no via crucis da política andou por aprender cousas dessas. As últimas, deixadas atrás, mas não em vão as últimas.

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      Oportunas as vossas considerações, amigos. A do Alfredo, por radicalmente verdadeira, e também porque me permite reiterar que o Direito é uma emanação do povo, ubi ius ibi populus: onde há Direito aí há um povo, diziam há dous mil anos em Roma.
      As do Ramiro, muito oportunas. Na verdade eu considero que a nossa última estação no via crucis da política andou por aprender cousas dessas. As últimas, deixadas atrás, mas não em vão as últimas.

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      Oportunas as vossas considerações, amigos. A do Alfredo, por radicalmente verdadeira, e também porque me permite reiterar que o Direito é uma emanação do povo, ubi ius ibi populus: onde há Direito aí há um povo, diziam há dous mil anos em Roma.
      As do Ramiro, muito oportunas. Na verdade eu considero que a nossa última estação no via crucis da política andou por aprender cousas dessas. As últimas, deixadas atrás, mas não em vão as últimas.

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      Oportunas as vossas considerações, amigos. A do Alfredo, por radicalmente verdadeira, e também porque me permite reiterar que o Direito é uma emanação do povo, ubi ius ibi populus: onde há Direito aí há um povo, diziam há dous mil anos em Roma.
      As do Ramiro, muito oportunas. Na verdade eu considero que a nossa última estação no via crucis da política andou por aprender cousas dessas. As últimas, deixadas atrás, mas não em vão as últimas.

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      Com certeza é este um grande programa de acção social. Não deixo de lembrar a tradição do anarquismo e a sua ajuda inestimável na nossa configuração como seres humanos, e na responsabilidade que todos temos nesse trabalho de procurar o (auto)conhecimento e a expansão do coração.

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      Com certeza é este um grande programa de acção social. Não deixo de lembrar a tradição do anarquismo e a sua ajuda inestimável na nossa configuração como seres humanos, e na responsabilidade que todos temos nesse trabalho de procurar o (auto)conhecimento e a expansão do coração.

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      Com certeza é este um grande programa de acção social. Não deixo de lembrar a tradição do anarquismo e a sua ajuda inestimável na nossa configuração como seres humanos, e na responsabilidade que todos temos nesse trabalho de procurar o (auto)conhecimento e a expansão do coração.

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      Com certeza é este um grande programa de acção social. Não deixo de lembrar a tradição do anarquismo e a sua ajuda inestimável na nossa configuração como seres humanos, e na responsabilidade que todos temos nesse trabalho de procurar o (auto)conhecimento e a expansão do coração.

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      Bravo por esta reflexão tão oportuna! É dia após dia mais necessário lembrar que todo costume social, toda tradição nasceu como solução ou melhora da vida em comunhão. Esquecer isto só serve para sentirmo-nos sempre superiores aos antepassados e sermos na realidade mais ignorantes cada geração. Tudo na tradição, até essas coisas tão abstractas da legislação, assentam na utilidade e na eficácia. E, desde logo, partiram de realidades concretas que na altura foram analisadas, e não do inescrutável capricho de uma autoridade de misterioso fundamento (que também houvo, pode ser).

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      Bravo por esta reflexão tão oportuna! É dia após dia mais necessário lembrar que todo costume social, toda tradição nasceu como solução ou melhora da vida em comunhão. Esquecer isto só serve para sentirmo-nos sempre superiores aos antepassados e sermos na realidade mais ignorantes cada geração. Tudo na tradição, até essas coisas tão abstractas da legislação, assentam na utilidade e na eficácia. E, desde logo, partiram de realidades concretas que na altura foram analisadas, e não do inescrutável capricho de uma autoridade de misterioso fundamento (que também houvo, pode ser).

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