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Nanã, para Begoña Caamaño

Hoje quero relatar um percurso emocional e intelectual que começou há aproximadamente uma semana. Tudo começou com a lembrança de uma canção que, lá no mês de Julho me tinha impressionado: Nanã, interpretada por Elza Soares. A canção, que a seguir reproduzo, causou em mim uma grande turvação,

tanto pela voz da cantora, que vindes de ouvir, quanto pela letra, que diz assim:

NANÃ
Esta noite quando eu vi Nanã
vi a minha deusa ao luar.
Toda a noite eu olhei Nanã
a coisa mais linda de se olhar.
Que felicidade achar enfim
essa deusa vinda só pra mim,Nanã.
E agora eu só sei dizer
toda a minha vida é Nanã.
É Nanã…

A canção faz referência à Nanã Buruku, que no Brasil resulta ser um «orixá das chuvas, dos mangues, do pântano, da lama, senhora da morte, e responsável pelos portais de entrada (reencarnação) e saída (desencarne)». Mas estas referências à noite presidida por uma lua acesa e a plenitude íntima que aqui se descreve traz à minha memória algumas teorias sobre a antiquíssima origem das Virgens negras do Românico europeu, que as relacionam com cultos pré-cristãos vinculados a uma fascinante retícula de relações conceptuais em que dançam juntos os atributos da Mãe Tríplice dos celtas, a Isis dos egípcios, a Ishtar dos acádios, a Inanna dos sumérios, a Venus dos Romanos e a Sta. Brígida dos irlandeses, se não mais.

Todo isto tinha pensado eu baralhar para hoje escrever que a Deusa, se quadra, me tinha tocado através das ondas da rádio primeiro e dos bits da rede depois, pois assim me sentia obsessionado por sua imagem, quando a morte prematura de uma escritora galega que toda a gente queria muito fez com que a presença de Nanã no meu íntimo fosse mais penetrante. Andei o dia todo a pensar que a deusa que veste de lilás, como gostava de reivindicar Begoña Caamaño em sua militância feminista, a deusa das chuvas e nomeadamente da lama, essa velha mulher que conserva para nós desde o início dos tempos o carinho imperturbado de uma avó, não era em modo algum uma imagem estranha para as galegas, e nomeadamente para aquelas que nos dedicamos a desenhar mediante palavras a cartografia sentimental desta Terra.

No meu vagar da manhã de ontem, cativado por uma forte emoção provavelmente não casual, apanhamos o carro e fomos caminhar pela praia de Baldaio. Durante o tempo de que dispúnhamos nos dedicamos a apanhar conchas, outro símbolo de Nanã, e a presença da marisma com todas as suas lamas fazia com que os meus pensamentos estivessem dedicados à deusa. Nanã não saia por nada da minha cabeça, e ao tempo o sorriso da amiga escritora, que um dia conheci aquando da apresentação de um livro em favor da lactação materna, semelhava deslizar-se sobre as ondas do mar. Por fim, quando já era preciso marchar, um vento cálido chegou do interior alagado de Baldaio e bateu na minha fronte. Interpretei isto como uma saudação, e a partir daí o vínculo emotivo cessou.

Agora, quando estou a escrever isto para os amigos, pergunto-me se faz sentido contar esta experiência ou se porventura resultará um bocado esotérica de mais. Mais não desejo permitir que um raciocínio excessivo me faça duvidar. Nestes dias fui visitado pela Deusa, eu acredito, e na manhã passada um ligeiro beijo da avó da Terra pousou na minha face. Se quadra no mesmo momento em que a nossa amiga Begoña consumou o trânsito que também por nós aguarda no tenro e morno colo da velha Nanã.

{Revista Palavra comum}

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