A inspiração da garça

Há muito tempo que pratico Kung Fu. Não sou, no entanto, um experto, e acho que já nunca serei. Conformo-me com ser, talvez, um utilizador avançado.
A utilidade que tem para mim é meramente terapêutica, ou ao menos tonificante. Gosto de acudir duas vezes por semana ao ginásio e dia após dia aprender uma coreografia que parte de um conhecimento tradicional e profundo do corpo, dos seus pesos e medidas, da sua motilidade, das suas hipóteses de reação, da sensibilidade da pele e da dureza dos ossos; mas também das potencialidades psíquicas que nos permitem agir quando o medo faz ferver a adrenalina e uma contestação imediata se torna necessária. Não é uma prática para resolver um confronto, mas o ensaio de técnicas para o poder evitar ou minimizar.
Ora bem, a realidade violenta que um dia pode pôr-nos a prova não é predizível. Ninguém pode ensaiar num ambiente de camaradagem e cordialidade o que se pode sofrer numa situação de violência real, em que a química e a física corporais e em geral as circunstâncias podem operar de modo imprevisível. Não se pretende através desta prática experimentar um medo falso nem solucionar teatralmente uma situação de perigo. Trata-se de desfrutarmos a ficção do sucesso, de praticarmos soluções hipotéticas e de treinar o cérebro e o corpo para o controlo. Isso é que é bem positivo: gravar no íntimo que qualquer problema que seja tem a sua solução, e que tão só com os recursos com que vinhemos ao mundo somos quem de sair vitoriosos.