Em verdade é ousado vir aqui falar da contradição de um mestre como
José Saramago, eu sei. Mas é para a ousadia que nestes dias, como
sempre, nos convoca a Festa Literária de Chaves.
Porque, não cabe dúvida, é o medo que devemos enfrentar se queremos
seguir o ensinamento de um mestre. Para assim acharmos um dia o nosso
caminho.
Na conferência A estátua e a pedra, o nosso autor diz:
«Mas a verdade é que eu duvido mesmo que
se possa falar de literatura como duvido que se possa falar de pintura
ou que se possa falar de música […]. E é como se eu desejasse que tudo
acabasse por limitar-me a uma contemplação muda pela consciência que eu
tenho de que, de uma certa maneira, em todos estes domínios da arte da
literatura, estamos lidando, estamos tentando relacionar-nos com aquilo a
que chamamos desde há muito tempo o inefável. O inefável, uma vez que é
inefável, é o que não pode ser explicado, é o que não pode exprimir-se,
havendo em todo o caso o cuidado de, a partir disto, não cair em ideias
de carácter transcendente onde tudo encontraria uma explicação que
seria exactamente não ter explicação nenhuma.»
Saramago não deseja “cair em ideias de carácter transcendente”, e
reconhece entrar diretamente no terreno da contradição. Segundo as suas
palavras:
«Esta atitude não parece racional, porque
não parece racionalista uma contradição à primeira vista e é uma
contradição numa pessoa que se considera a si mesmo racional, quer dizer
que eu tento fazer passar tudo pela razão. Isto não quer dizer que eu
tente também fazer passar pela razão os sentimentos que vivem ao lado da
razão, embora não haja grande migração de um lado a outro […].»
Com certeza, afirmar um escritor que a literatura trata sobre o que
não pode ser exprimido com palavras é uma contradição tamanha.
Porventura, não é a literatura a arte que se exprime através das
palavras? Mas a literatura acontece, e até há pessoas, por exemplo o
Saramago, fazem desta atividade criativa a sua vida e até têm o máximo
reconhecimento mundial. Como é isto possível? A resposta a esta pergunta
está na vida do homem, mas não no que ele diz.
Acho que José Saramago tentou, mais do que realmente foi, ser
racional. A razão impõe uns limites muito rijos para enfrentar a vida, e
como a literatura é um modo permanente de nos aproximar aos mistérios
vitais, esta constantemente excede as fronteiras do racional. O escritor
reconhece outros planos quando referencia o Fernando Pessoa (o sentir
ao lado do pensar), mas para ele funcionam como opostos: «Enfim
reportando-nos a um verso do Fernando Pessoa quando ele dizia “O que em
mim sente está pensando”, eu propunha que esta frase, no fundo mais um
jogo de palavras dos muitos com que o Fernando Pessoa se entretém e nos
entretém, em vez de dizermos “O que em mim sente está pensando”, e
parece que há de facto uma tendência nessa direcção, talvez devêssemos
dizer “O que em mim pensa está sentindo”.» Pelos vistos, não só
reconhece dois PGLplanos, senão que entende que o racional está por cima
do sentimental. Isto é coerente com se reconhecer racionalista, mas
tenho para mim que o discurso a seguir demonstra bem o contrário.
Continua a relatar o seu percorrido literário do seguinte modo:
«Acontece que, tendo eu começado a minha vida literária muito cedo, uma
vez que aos vinte e cinco anos publiquei um romance que não é bom e que
só vinte anos depois voltei a publicar, isto leva muitas vezes algumas
pessoas de boa vontade a perguntarem-me se decidi ficar calado durante
vinte anos para ganhar experiência, para depois começar a trabalhar com
mais seriedade. E eu sempre digo que não, porque ninguém tem a certeza
de viver mais vinte anos e seria absurdo dizer “Vou agora esperar vinte
anos”, como se os tivesse garantidos para depois disso começar a
escrever com mais seriedade. Não foi assim e de resto toda a minha vida
foi feita sem planos, sem projectos, sem estratégias, sem definir
caminhos para chegar a determinados objectivos e isso tem que ver também
e talvez sobretudo com a minha própria actividade literária.»
Saramago partilha aqui a sabedoria do mestre sufi Idries Shah, quando
diz que vivemos apoiados em pseudocertezas, e a maior delas é que
amanhã seguiremos vivos. Mas estima que o pensamento, quer dizer, a
atividade cerebral, é superior ao coração, isto é, a vida sentimental. E
aqui é quando o seu próprio relato vital e literário ressalta de modo
evidente o pouco racional que na verdade era Saramago:
«Verdadeiramente eu nunca tive projectos
na vida, há que deixar isto bastante claro e quero demonstra-lo desta
maneira. Se eu, em 1976, quando eu escrevi, quando eu estava a escrever o
Manual de Pintura e Caligrafia, tivesse escrito num papel aquilo que eu
gostaria de vir a fazer, encontrar-me-ia com uma página branca, quer
dizer, teria uma página branca que não seria capaz de encher porque eu
não tinha projectos nenhuns para o futuro. Ao contrário de Balzac, e
quando eu digo Ao contrário de Balzac é ao contrário em tudo, claro
está, e mesmo ao contrário de, por exemplo, Fernando Pessoa, que tem
listas, que escreveu listas de obras a realizar, eu nunca tive aquilo a
que se chama A Obra a Realizar.»
Então, permitam-me perguntar agora: através de que sorte de
racionalidade a sua obra conseguiu florir? Vejamos como lembra a
composição de vária das suas obras:
«O Memorial do Convento nasceu duma
circunstância fortuita e que eu posso contar-vos em meia-dúzia de
palavras, que um dia, estando eu em Mafra, com algumas pessoas que me
acompanhavam, ou a quem eu acompanhava, e estando diante do convento, os
que conhecem o Convento de Mafra sabem que é uma coisa imensa, enorme, e
eu disse em voz alta “Gostaria um dia de pôr isto num romance”.
Provavelmente se eu não tivesse dito em voz alta, se eu tivesse pensado e
calado, a própria dimensão da tarefa provavelmente intimidava-me tanto
que eu não tinha escrito o livro. Só que ao pronunciar em voz alta
aquilo que eu tinha pensado duma certa maneira senti-me obrigado perante
as pessoas que me tinham ouvido que inevitavelmente me iriam perguntar
“Então, sempre escreves o romance sobre o Convento de Mafra?”»
«O Ano da Morte de Ricardo Reis foi
publicado em 1984, mas a verdade é que a ideia do Ano da Morte de
Ricardo Reis é anterior ao Memorial do Convento. O que acontece é que,
enfrentando-me com o Ricardo Reis, que é a mesma coisa que dizer
enfrentando-me com o Fernando Pessoa, entrou-me um tal pavor, um tal
medo de desafiar as iras dos especialistas do Fernando Pessoa, eu que
não tinha diplomas nem atributos nem méritos conhecidos para me meter
nesse mundo pessoano, que, tal como terá dito outro, Afastai de mim esse
cálice, eu disse-me a mim mesmo, Afasta de ti essa tentação.»
A História do Cerco de Lisboa defende «que os cruzados não tivessem
efectivamente ajudado os portugueses a conquistar Lisboa. O que é que o
autor que sou eu desta confusão toda, porque reconheço que para um
leitor desprevenido, o leitor confunde-se nestes diferentes planos
narrativos, quis dizer com isto? Também o autor não tem obrigação
nenhuma, nem provavelmente se lhe deve pedir, perguntar o que é que quer
dizer com isto. Mas como estamos aqui justamente para falar do que se
fez e do porque se fez, então aquilo que eu pretendo dizer é
precisamente o contrário daquilo que faria o romancista histórico. O
romancista histórico faria romances históricos, e com este livro que
aparentemente é o mais histórico de todos, o que eu quero dizer é que a
verdade histórica não existe.» Então, escreve esta obra para dizer que a
verdade histórica não existe? Onde o racionalismo? Ele até afirma:«A
verdade histórica, não é que ela não exista, mas provavelmente existe
num lugar inacessível, onde não é possível chegar.» Se não é possível
chegar, nunca ninguém terá podido escrever certo sobre a verdade
histórica, não é?
E continua assim:
«O Evangelho segundo Jesus Cristo, que é
um livro que causou muita polémica e que é responsável por eu estar a
viver em Lanzarote, é um romance que pelos ecos que me chegaram foi lido
em Israel com uma atenção extraordinária devido, digamos, ao próprio
carácter humano da figura de Jesus, profundamente humano, totalmente
humano. É um livro que eu não projectei, nunca, nunca me passou pela
cabeça vir a escrever uma vida ou reescrever uma nova vida de Jesus
havendo tantas e tantas de todo o tipo desde as insultuosas às
interpretações malévolas, às críticas ferozes ou pelo contrário ao mais
comprometido do ponto de vista do dogma. Enfim, sobre esse pobre homem
tudo se disse e portanto parece que não fazia falta um livro mais.
Simplesmente eu fui obrigado pelas circunstâncias a escrever esse livro,
e as circunstâncias foram estas. Estando eu em Sevilha, e aqui estas
coisas ligam-se todas, quer dizer, eu estava em Sevilha com a minha
mulher, minha mulher é sevilhana, eu não estaria em Sevilha nessa altura
nesse momento se eu não tivesse casado com ela, portanto o livro O
Evangelho segundo Jesus Cristo escreve-se porque nós nos encontrámos,
escreve-se porque ela era de Sevilha, escreve-se porque eu atravessei
uma rua naquele momento determinado, porque sem isso não haveria
Evangelho segundo Jesus Cristo. Da mesma maneira que também, enfim, isto
só é importante para nós, se nós nos encontrámos e nos casámos foi
porque ela leu O Ano da Morte de Ricardo Reis. Portanto há aqui uma
ligação entre vida e obra que passa até enfim pela intimidade mais
extrema. Ora bem, estando eu em Sevilha e atravessando uma rua na
direcção dum quiosque de jornais, olhando em frente porque o trânsito
vinha dum lado e doutro e enfim eu tinha de atravessar com bastante
cuidado mas olhando em frente e ao lado eu leio, e peço que acreditem
naquilo que eu vou dizer, leio distintamente no conjunto de jornais
suspensos e de revistas que caracteriza qualquer quiosque de venda de
jornais e de revistas, leio distintamente em português O Evangelho
segundo Jesus Cristo, Em português, ainda por cima, em português.
Passei, atravessei a rua, continuei a andar, dez metros adiante paro e
digo, Isto não é possível, mas enfim para saber se era possível ou não
voltei atrás para verificar e o que eu vi foi que nem estava Evangelho
nem em português, nem em espanhol, nem em italiano, nem de forma
nenhuma, não estava nem Jesus, nem estava Cristo. Quer dizer, eu tive
uma, não é uma alucinação, não, não vamos pôr a questão assim, eu tive
simplesmente uma ilusão de óptica. A outra hipótese é que Deus tenha
querido que eu escrevesse este livro e portanto colocou ali
miraculosamente, foi um milagre, as letras que depois desapareceram.»
Isto que ele descreve como ilusão óptica também se podia chamar de
revelação, ou ao menos de visão. O nosso autor pretendia é ser
racionalista e “não cair em ideias de carácter transcendente”, assim que
preferia falar em termos exclusivos da Física e da Anatomia. Entendia
que a literatura tem o seu alicerce no inefável mas penetrar neste
assunto era metafísico demais. Ele gostava de escrever e assim,
pragmática antes do que teoricamente, o cometido mais profundo da
literatura tinha lugar como um milagre que pode ser vivido sem
necessidade de o exprimir.
Saramago retratou a sua família reconhecendo que a sua “atitude de
espírito” lhe rogava para que atuasse como vassoura da memória, uma
atitude que significava ressaltar através da arte escrita o valor humano
da gente que ele amava. Sendo sua humanidade um farol que se erguia por
sobre a sociedade para iluminar o melhor dela própria.
Reconhece também que os personagens que ele criou foram os seus
mestres de vida, os que mais intensamente lhe “ensinaram o oficio de
viver”. E este facto só é possível se entendermos função do escritor
como o de um médium, alguém que possui o conhecimento da vida no momento
em que por ele passa e só através dele se traduz em literatura,
entrando pela cabeça de não sabemos quais ignotos arquivos humanos,
sendo providos no coração de emoções universais e ornamentados no
cérebro por quaisquer artifícios mais ou menos retóricos, para em fim
ser vertido através dos dedos para uma caneta e um papel.
Portanto, essa reconhecida contradição não foi um defeito, não foi um
erro, pois foi definitivamente resolvida escrevendo, criando, deixando
que toda essa humanidade que ele possuía fosse harmonicamente florescida
na comunicação com o outro, deixando o seu coração governar a razão e
se abrir passo por entre as sombras do mundo, iluminando mediante a arte
aquilo que a musa, tão impossivelmente racional, lhe dizia ao ouvido.
Concluo, portanto, que é difícil ser-se artista e se não ser
espiritual. A razão disto ─sejamos ao menos um bocado racionalistas─ é
facto de o inefável constituir a essência da arte. O mestre falou e
tinha razão, muito embora fosse contraditório. Se calhar, não é possível
a arte se não assumirmos essa fulcral contradição. Porque o paradoxo
pode bem ser, no fundo, a mais velha expressão poética do inefável.
*
Notas: Palestra de Alfredo Ferreiro Salgueiro na mesa “Reflexões à volta de José Saramago” ~ III Festa da Literatura de Chaves (14 a 17 de novembro de 2018); Cf. “Uma conversa com José Saramago”; Caricatura de Rui Rodrigues de Sousa (Desenhos do Rui).
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